Ontem, no final da noite, chegou às minhas mãos, muito antes de qualquer previsão de lançamento, um DVD do filme “Tropa de Elite”. Dei play para ver que tipo de cópia era aquela e, para meu espanto, lá estava o filme inteiro, em altíssima qualidade e – detalhe - com cartelas em inglês.
Estávamos em três naquele momento, eu e as duas Maris, sentadas de boca aberta diante da televisão. Depois de uns cinco minutos paramos o DVD, sendo nós três operárias da “indústria” audiovisual deste “país”, mais especificamente do Rio de Janeiro, começamos um longo debate sobre pirataria.
Não sei qual a posição de cada um sobre este assunto. Eu, do meu lado, costumo ser completamente aberta à idéia de que cultura só é paga por quem pode e se interessa em pagar. Os outros baixam da Internet, compram no camelô, se infiltram nos grandes shows. Quanto a mim, sou uma mistura desses dois públicos. Prefiro ver filmes no cinema, mas nem sempre tenho grana e posso. Gosto de copiar filmes (muitas vezes alugo filmes só para fazer uma cópia e ter em casa), baixar pela Internet e, se der vontade, compro mesmo no camelô (coisa que só fiz uma vez - Os Simpsons, que estréia hoje, já está nas ruas há tempos e eu me recuso a assistir. Estou contando as horas para ir ao cinema). O mesmo se aplica ao resto da cultura. Mari tem uma visão muito parecida com a minha, mas se mostrou preocupada com a existência de uma cópia de um filme nacional que nem anunciado ainda estava. E aí começou nosso debate.
A primeira pergunta que nós nos fizemos foi: como diabos aquela cópia havia chegado nas ruas? Estávamos assistindo a uma cópia de uma cópia comprada na Uruguaiana. Cópia da cópia. Vimos mais um pouco do filme. Ele estava inteiro lá, finalizado. Avançando, descobrimos que faltavam ainda os créditos finais, substituídos por um color bar. Parecia um filme tirado diretamente da ilha de edição, depois da marcação de luz. Mas quem teria tirado esse filme e o espalhado pelo “mercado informal” a essa altura do campeonato?
Quem trabalha com cinema sabe que, antes mesmo do filme estar pronto, são feitas várias cópias em DVD para serem mandados para os mais diversos fins. Como a cópia do “tropa de Elite” estava com cartelas em inglês, começamos a suspeitar que poderia ter sido feita, originalmente, para o tradutor. Como a marcação de luz estava pronta, poderia ser uma cópia de revisão do fotógrafo. Como havia alguns momentos de áudio esquisito, poderia também ser uma cópia de revisão de áudio, ou teste ou...
No Brasil eu acho que somos meio dados demais. Se precisamos de música no filme, fazemos uma cópia e mandamos para o trilheiro. Precisamos de tradução, mandamos uma cópia para o tradutor... são muitas cópias em DVD do filme e, por algum motivo que não entendo, acreditamos que não vão escapar ao controle. Mas porque não escapariam?
Minha faxineira sabe como fazer cópia de DVD no meu computador. Ela tem um computador em casa, com gravador de DVD, como muita gente. Se eu deixo um DVD interessante à vista, quem disse que ela não vai copiar? Eu mesma a incentivo a fazê-lo, pois ela divide conosco, as donas da casa, o gosto por Kurosawa, Almodovar e filmes de terror dos mais variados estilos e orçamento. Ela só não copia se não quiser. E quem disse que aquele profissional que recebeu uma cópia não vai fazer, antes de devolver, uma cópia sua para ter em casa? E quem disse que não vai mostrar para a namorada? E para o irmão? E esse irmão fazer uma cópia, mostrar para os amigos e... bom, o filme nem tem mídia ainda e já está vendendo na Uruguaiana...
Isso abriu ontem um monte de perguntas na nossa cabeça. Há como controlar a pirataria, se até mesmo o último livro do Harry Potter já estava na Internet antes mesmo de ser lançado? Começo a achar que não. Claro que essa cultura “dada” brasileira facilita um pouco as coisas. Mas, como a indústria fonográfica começa a entender, não há como controlar isso. Quando se acaba com um esquema de distribuição de músicas, outro nasce. E o pior (pelo menos para as polícias e juristas do mundo) é que aqueles que disponibilizam a cultura na Internet na maioria das vezes não o fazem porque querem dinheiro, mas porque querem trocar cultura uns com os outros, livremente. Então classificá-los de “ladrões” não é tão simples assim.
Isso nos leva a começar a pensar que, no futuro, num futuro tão próximo que talvez já seja agora mesmo, temos que contar com a distribuição espontânea, livre, tax free e mundial de qualquer produto digital ou que possa ser digitalizado. Uma pessoa que já entendeu isso foi um amigo chamado Bruno Viana. Ele fez um filme que, ao mesmo tempo que era lançado no cinema, era lançado na Internet, para download, P2P. Se isso foi positivo ou negativo para o filme dele eu não sei. Talvez ele mesmo não saiba. Mas foi um grande passo em direção ao futuro da cultura digital.
A(s) segunda(s) pergunta(s) que nos veio à mente é: o que essa distribuição antecipada e informal vai fazer com o filme quando for lançado nos cinemas e nas locadoras? Quem é o público que compra na Uruguaiana? É o mesmo que vai (ou iria) ao cinema? Essa distribuição informal vai gerar uma mídia espontânea que irá encher os cinemas ou vai fazer com que as salas fiquem às moscas?
Eu acho que, quando fazemos essa pergunta sobre um filme estrangeiro (principalmente americano) a resposta normalmente é: as salas enchem de qualquer forma porque as pessoas que vão aos cinemas ver esses filmes têm dinheiro e querem entretenimento, então vêem qualquer coisa. Além disso, filmes estrangeiros têm mais apelo, distribuição e mídia que filmes nacionais. Bom, tudo isso é verdade, mas, de qualquer forma, a pirataria não parece estar afetando os filmes americanos e, na verdade, acho que não nos importamos se isso acontecer. Não afetam mesmo que meses antes já estejam nas ruas, em boas cópias, com legenda e dubladas, a dez reais (quase metade do preço da entrada de cinema). A isso muita gente responde, novamente, que são dois públicos.
Bom, e os filmes nacionais? Isso não é verdade para eles?
Cópias piratas de filmes nacionais vendidas a dez reais antes mesmo do lançamento do filme nos dão alguma revolta, não? E por que isso? Acreditamos que o filme vai fazer menos público, vai deixar as salas de cinema vazias e vai faturar menos dinheiro, gerando menos filmes produzidos no futuro...
Sobre isso, quem aqui, sinceramente, acha que o povão paga 16 reais para ir ao cinema ver filme nacional? Até paga, duas vezes por ano. Talvez, até, uma vez por mês, mas não paga para ver todos os filmes que gostaria. Até porque ir ao cinema com a família custa, para dois adultos, 32 reais, quase um décimo de um salário mínimo.
Outra pergunta é: porque estamos preocupados se o filme fatura dinheiro ou não? O filme não precisa faturar nem um único centavo porque, com raríssimas exceções, já foi devidamente pago com o meu, o seu, o nosso rico dinheirinho, pois sabemos que quem financia o cinema nacional é povo brasileiro.
Se você está lendo essas linhas e não sabe como funciona nossa “indústria cultural” vou resumir em rápidas linhas: quando alguém quer fazer um filme, faz um projeto e manda para o governo (nacional, estadual ou municipal) que vai avaliar o projeto e dar um selo de “ok”. Esse ok significa que, se você arrumar um “patrocinador”, essa empresa pode pegar parte do dinheiro com que iria pagar imposto e “aplicar” em um filme. Dessa forma, quando um projeto recebe patrocínio da Petrobras, por exemplo, não significa que a Petrobras vai pegar o dinheiro dela e colocar no filme, mas que ela vai deixar de dar dinheiro para o governo e vai colocar esse dinheiro no filme e, de quebra, ganhar um monte de mídia, colocar o nome dela em todos os lugares possíveis e imagináveis, e se sair de grande patrocinadora do cinema nacional. Muitas vezes, até ganhando uma fatia dos lucros. Na verdade quem patrocina a cultura não é a Petrobras, mas o governo, com o dinheiro que deixa de gastar em todas aquelas coisas com as quais deveria gastar...
Não estou fazendo um discurso contra esse tipo de patrocínio, mas questionando o fator “retorno financeiro”. Um filme não precisa ter retorno financeiro, pelo menos não para o diretor, produtora ou patrocinador, pois está tudo pago, desde o início. O único que precisa ter lucro é o exibidor e, talvez, o distribuidor (talvez porque também existem editais de distribuição, não é?). Então, porque o filme nacional custa o mesmo preço do ingresso do filme estrangeiro, se só o exibidor ainda precisa ser pago?
Sei que fugi um pouco do assunto, mas não sei responder a pergunta sobre se o filme “Tropa de Elite” vai ganhar ou perder com a distribuição pirata. A primeira vista é de que perde, porque muitos que iriam ao cinema ver um filme com um apelo tão forte (a polícia do Rio de Janeiro) vão deixar de fazê-lo. Ao mesmo tempo, essas cópias demonstram que o filme gera interesse e ver tantas cópias sendo vendidas pelas ruas pode despertar curiosidade naqueles que podem e se interessam em pagar para ver um filme no cinema.
Obviamente que, depois da discussão, eu vi o filme até o fim. Adianto que é muito bom, bem realizado, dirigido, fotografia linda, dá nó na garganta e desperta todo o tipo de sentimento. Engraçado que um dos policiais do filme é escalador. Tenho um amigo alpinista que é da polícia e pensei o tempo todo nele. Aliás, mal posso esperar para conversar com ele sobre esse filme. Queria muito saber quais as impressões que ele vai ter, muito embora eu tenha receio de ouvi-las. Mas acho que esse filme despertou em mim a vontade de ouvir mais o que esse meu amigo tem a dizer.
Minha dica sobre o filme: não vejam a cópia. Se você gosta de cinema, espere para ver na tela grande, porque tenho certeza que vai ser muitíssimo melhor. Esse filme tem apelo para ser um blockbuster grande como “Cidade de Deus”. Quando lançar eu certamente irei assisti-lo, mas com dor no coração de já saber a história.
Acho que o grande problema dessa cópia parar nas mãos do “público” antes do lançamento ou de qualquer divulgação é a quebra da surpresa, do impacto que poderia ter se ele fosse ultra-sigiloso e só fosse visto no dia da estréia.
Eu gosto de dias de estréia, principalmente de grandes filmes. Dá um frio na barriga, esperar, comprar o ingresso, entrar no cinema, a luz apagar e ter a curiosidade finalmente saciada. Você e aquele monte de gente. É quase um gozo coletivo, é como participar em silêncio de uma multidão e, ao mesmo tempo ignorá-la.
(Às vezes me esqueço como gosto de cinema.)
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Ps: Mari, que trabalha com uma conhecida cineasta brasileira, está com medo de que o filme que elas estão finalizando tenha o mesmo destino do “Tropa de Elite”. Disse que a tal cineasta, já alerta para a possibilidade, tinha um medo um pouco diferente: de que a cópia pirata, vista pelo povão, não seja a cópia final, e sim uma cópia de má qualidade, ainda sem a marcação de luz.
Isso é que é preciosismo de diretor. :-P
Para você ver.
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Ps2: Só porque já levantei a bola dos patrocínios culturais, fui ver no dia dos pais, a exposição do Da Vinci, na Casa França-Brasil.
“Patrocínio” Bradesco e Gol. Propaganda por toda parte, cartazes, vídeos das empresas.
Mas se cobrava ingresso. E sabe quanto custava? R$ 30,00!
Pois é. O dinheiro que pagou foi do povo, mas só a elite pode ver.
Um comentário:
nossa, você escreveu pra caralho... rs confesso que fiz leiturinha dinâmica porque me deu preguiça rs... quanto a pirataria... Walter Benjamin estava certo quando escreveu A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. :D
boa sorte com o novo blog. os meus não duram mais que seis meses, rs.
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