domingo, 24 de agosto de 2008

A solidão



Estou sozinha em casa, em silêncio.
Bom, não totalmente em silêncio. O fato de digitar, as teclas, o ventilador do computador, tudo isso são barulhos meus. Somados a eles vêm outros tantos barulhos do corredor de ar do prédio. Há um fim de festa, gente rindo. De vez em quando alguém toca um piano e há aplausos. O vizinho de trás vê televisão no quarto. Do outro lado da rua um casal conversa, animado, na janela. Um carro passa. Depois não passa. Depois passa outro. Então há todos esses barulhos preenchendo o vazio da solidão.

Gosto do barulho do teclado. Me faz uma companhia insubstituível. Não é sempre que ele se impõe sobre o resto. Meus computadores, colegas de trabalho, fazem muitos barulhos. São janelas para histórias que eu ajudo a contar. Sou editora de vídeo. Estou editando vídeos sobre a solidão. E aqueles barulhos, e as músicas, e os gestos solitários de personagens sem solução me fazem companhia noite à dentro, quase toda noite.

(O celular agora toca e interrompe. Falo. Passa.)

Esses personagens com os quais convivo. Tenho pensado muito neles. Sozinhos, solitários, sofridos. Tenho pena dessa solidão que eles vivem. Solidão que é um espelho da solidão de quem escreve, ou do medo da solidão de quem escreve aqueles personagens. Conheço esse medo de vê-lo nas pessoas. As pessoas não gostam de se sentir solitárias, elas procuram companhia, elas procuram outras pessoas, a Tv, o telefone, ouvir música. Eu não. Eu gosto de ficar sozinha, em silêncio. A cidade me transtorna um pouco com todos os seus barulhos. É difícil parar de prestar atenção no mundo quando há gente, visível ou ouvível, em todas as direções. Amo a solidão. Amo estar sozinha em casa. Troco fácil a noitada, os amigos, a farra, pela noite all by my self em frente ao computador, junto do livro ou olhando para a parede.

Gosto de repensar minha vida o tempo todo. Gosto de imaginar a possibilidade de voltar no tempo e mudar umas coisas. Repenso meus momentos de desespero, repenso e imagino-me saindo daquilo. Não sei se há aí uma ingenuidade, ou uma tirania. Certamente há a esperança de que não me deixe cair na mesma armadilha.
Gosto também de sentir raiva. É bom sentir raiva quando se está sozinha. Às vezes acontecem coisas que me dão verdadeiro ódio, mas eu prefiro adiar o ódio para a solidão. Prefiro gritar com as paredes e fantasiar vinganças. De preferência vinganças a serem concretizadas.

Eu gosto da solidão para planejar coisas más.
Eu gosto da solidão para me atormentar com coisas ruins.
Eu gosto da solidão também para imaginar um futuro bem bacana.
Às vezes megalomaniacamente bacana.
Tipo mega sena, iate, mansão, mulheres.
Tipo uma festa bacanérrima de aniversário.
Tipo torturar e matar uns políticos filhos da puta.
Tipo ter filhos e netos.
Tipo rever uma amiga que tem tempo.

Eu gosto de ficar sozinha também para não pensar em nada.
Perder meu tempo cutucando uma espinha, cortando unha do pé, fazendo bagunça.
Não gosto de desperdiçar qualquer oportunidade.
Por isso não dói trabalhar com aqueles personagens solitários do Ceylão. Não dói porque eles não me tocam. Na verdade, por mais que eu os veja e os construa também, eu não os compreendo. O desespero da monotonia não me atinge. O desespero de não ter com quem também não me atinge. Me atingem as pessoas, isso sim. Mas a solidão é como uma casa, um refúgio, um lugar sempre possível. Sempre viável. E sempre propício a me levar de volta ao mundo dos outros. Afinal, a solidão feliz de uma pessoa sempre atrai uma multidão de gente.